Olá!
O texto a seguir não é de minha autoria.
Achei o mesmo durante a época onde o pessoal estava alvoroçado pela mídia a discutir sobre a diminuição da maioridade penal para 16 anos.
O texto foi postado no Facebook por uma das páginas do grupo Anonymous Brasil e eu me identifiquei muito com ele.
O texto é longo, como muitos que posto aqui, então tenham paciência ao ler.
É isso.
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HECATOMBE X ECA
Miguel Granato Velasquez,
Promotor de Justiça
O país inteiro foi abalado recentemente pelo assassinato
brutal do menino João Hélio, de apenas 6 anos de idade, no Rio de Janeiro. O
corpo da criança foi arrastado por criminosos que fugiam em um carro roubado,
sendo que os malfeitores, a se confirmar as investigações policiais, sabiam da
presença do menino no lado de fora do veículo.
Para aqueles de nós que jamais perderam algum ente querido
em tão tenra idade, vitimado pela violência urbana, será difícil, senão
impossível, avaliar a extensão da dor que deve estar sendo sentida pelos
familiares da criança. Trata-se de uma perda irreparável, que marcará para
sempre as pessoas que conheciam e amavam João Hélio.
O crime foi amplamente divulgado pelos meios de comunicação,
e, tendo em vista a participação de um adolescente de 16 anos entre os autores
do homicídio, reacendeu o debate nacional acerca da redução da maioridade
penal, hoje fixada em 18 anos. Não impediu a controvérsia o fato de que a
participação desse adolescente, conforme apurado pela Polícia, teve menor
importância (controlavam a ação dois adultos de 23 e 18 anos), e que o crime
provavelmente teria sido cometido da mesma forma sem ele.
A polêmica, na verdade, não é recente, e a cada novo crime
praticado por adolescente que chega às manchetes ela ressurge, com renovada
intensidade, em parte graças à sensação de que estamos convivendo com uma
explosão da violência praticada pelos menores de 18 anos.
O tratamento dado à matéria pela mídia tem se mostrado
amplamente favorável à redução da maioridade, que goza também do apoio de
diversos deputados e senadores. Tanto que já tramitam no Congresso projetos de
lei visando efetivar tal redução, recrudescendo a repressão aos autores de atos
infracionais. O sentimento generalizado é de que a única forma de evitar
assassinatos como o de João Hélio é punir com maior rigor os infratores,
fazendo-os sofrer mais pelos crimes cometidos.
Todos compreendemos o desejo de justiça nutrido pelos
familiares da vítima, e até mesmo de vingança pela barbárie que lhes foi
imposta. Trata-se de uma reação emocional absolutamente natural e justificável,
e apenas uma pessoa insensível esperaria algo diverso. Compreendemos, também, o
sentimento de solidariedade que a tragédia desperta em toda sociedade. Devemos,
entretanto, rejeitar a noção de que, para demonstrarmos essa solidariedade e
sensibilidade, precisamos imediatamente aderir ao discurso que clama por mais
castigo e repressão.
Realmente, se do ponto de vista individual sentimentos de
vingança são esperáveis, do ponto de vista coletivo a sociedade precisa
ponderar se de fato a vingança e a repressão pura e simples constituem
critérios convenientes para a administração da Justiça. A conclusão poderia até
ser afirmativa, já que se trata, no fundo, de uma escolha política, mas a
discussão precisa ser ampla, com a divulgação da informação completa pelos
meios de comunicação, e não pela metade.
Tal debate, que interessa a todos nós, encontra-se hoje
limitado e acanhado, sendo ditado apenas pelo sentimento de indignação diante
de crimes particularmente chocantes. Para muitas pessoas, as manchetes dos
jornais dão não só a sensação, mas a verdadeira certeza de que os adolescentes
praticam atualmente a maioria dos delitos violentos, tendo se tornado os
criminosos mais perigosos.
É preciso investigar até que ponto essa percepção é
fidedigna, analisando todos os aspectos da questão e todos os fatos
relacionados, para que possamos, após, decidir com sensatez. Afinal, o envio de
adolescentes para o sistema penitenciário é uma decisão bastante séria, com
enormes repercussões, inclusive para o futuro do país, e não pode ser decidida
de forma emocional ou irrefletida.
Vamos, portanto, aos fatos.
Segundo apontam os dados estatísticos sobre a criminalidade,
do total de delitos praticados no Brasil, apenas 10% deles são praticados por
crianças ou adolescentes. Esse número, informa a ONU, chega a ser inferior à
média mundial, que é de 11,6%. No Japão, aliás, os delitos praticados pelos
menores chegam a 42,6% do total.
Do total de delitos (atos infracionais) praticados por
adolescentes, apenas 8% correspondem a crimes contra a vida, como o homicídio,
que costumam ganhar destaque na mídia, e 1,5% a crimes contra os costumes, como
o estupro. Mais de 70% do total consiste de crimes contra o patrimônio. Apenas
o crime de furto, que é praticado sem violência ou ameça à pessoa, corresponde
a 50% do total de delitos cometidos pelos adolescentes.
Além disso, de acordo com pesquisa feito pelo advogado
George Wilton Toledo (com base em dados da FEBEM paulista), a média de 8% de
crimes contra a vida permanece a mesma desde a década de 1950. Se mais crimes
violentos estão sendo cometidos por adolescentes, não é porque a proporção dos
atos infracionais contra a vida aumentou, mas sim porque a quantidade total de
crimes de todas as espécies cometidos tanto por adolescentes quanto por adultos
aumentou, acompanhando o êxodo rural e o crescimento desordenado dos centros
urbanos nas últimas décadas. Não se trata, portanto, de um fenômeno restrito ao
universo dos adolescentes infratores.
Segundo levantamento da Secretaria de Justiça de São Paulo,
em 2003 os adolescentes foram naquele estado responsáveis por apenas 1% dos
homicídios, 1,5% dos roubos, 2,6% dos latrocínios e menos de 4% do total de
crimes.
É incorreta, portanto, a percepção atualmente em voga de que
os adolescentes estariam cometendo a maioria dos crimes violentos. Na verdade,
se o Brasil se destaca mundialmente com relação a índices de violência, não é
por causa dos crimes cometidos pelos jovens, mas sim pelos crimes cometidos
contra os jovens.
De fato, segundo um ranking da ONU, o Brasil é o país onde
mais morrem jovens de 15 a 24 anos por armas de fogo, totalizando 15,5 mil
mortes somente em 2004. Entre 1994 e 2004, verificou-se um aumento de 64% do
número de homicídios contra jovens.
No Brasil, a cada dia 16 crianças e adolescentes são
assassinados, e a cada 8 horas, no Rio Grande do Sul, uma criança ou
adolescente é abusado sexualmente, e isso levando em conta apenas os delitos
registrados.
Conforme estudo divulgado este ano pela Organização dos
Estados Ibero-americanos, o país ocupa a quarta posição no ranking dos países
mais violentos do mundo, e a criminalidade da qual são vítimas os jovens
alcança cifras astronômicas. O número de assassinatos de jovens no Brasil
corresponde a mais de 100 vezes a taxa de países desenvolvidos como Áustria e
Japão.
No entanto, além da violência contra a vida, os jovens
brasileiros também são submetidos a muitos outros tipos de violência, como a
miséria, a negligência e abandono paternos, o desemprego, as agressões
domésticas, tanto físicas quanto psíquicas, a falta de atendimento básico de
saúde, a educação deficiente, as drogas e o tráfico e a moradia em locais
marcados pela criminalidade ou controlados pelo crime organizado. De fato,
crescer no Brasil, especialmente para as populações carentes, é uma experiência
de alto risco.
Sabe-se que a miséria não é um fator que, por si só, conduz
à criminalidade. Na verdade, a imensa maioria dos jovens pobres não se tornam
infratores, apesar de viverem em condições extremamente desfavoráveis. Por
outro lado, quase todos os infratores são pobres, o que está a indicar que, se
a miséria não determina uma vida de crimes, ela certamente constitui um fator
de elevado risco.
Além disso, segundo o DIEESE, a taxa de desocupação juvenil
gira em torno de 50%, sendo que a maioria dos empregos disponíveis são
precários e mal remunerados. A taxa de desemprego entre os jovens é duas vezes
maior que a da população em geral, e o número de jovens entre 15 e 24 anos
empregados caiu pela metade de 1991 a 2001. Para os jovens pobres, que não
poderão ser sustentados pelos pais ― que se encontram ausentes, também
desempregados ou sub-empregados ―, essa falta de inserção profissional e de
renda torna-se um dos fatores que acabará contribuindo para que parte deles
acabe enveredando para a criminalidade, ante a absoluta ausência de
perspectivas.
O abandono e a negligência familiares e a falta de afeto e
diálogo também são problemas comuns que afligem os jovens, não sendo de
espantar que mais de 90% dos adolescentes infratores internados provenham de
famílias bastante desestruturadas, marcadas por agressões físicas e emocionais,
problemas psiquiátricos e pela ausência das figuras paterna e materna, seja
pela rejeição pura e simples, seja pela morte ou doença, muitas vezes causadas
também pela violência urbana.
A deficiência no atendimento à educação e o consumo de
drogas merecem destaque todo especial, pela constância com que aparecem no
perfil dos adolescentes infratores. De fato, em 2002, 51% dos adolescentes
infratores estavam fora da escola no momento da internação, e 6% eram
analfabetos. Além disso, 89,6% dos adolescentes internados na faixa dos 16 a 18
anos de idade não tinham concluído o ensino fundamental, demonstrando alta
defasagem escolar.
Ainda segundo o levantamento de 2002, 85,6% dos adolescentes
internados faziam uso de drogas antes da apreensão, especialmente a maconha (67,1%)
e o álcool (32,4%).
É ilustrativo que, no caso do assassinato de João Hélio, um
dos autores do crime, que conta com 23 anos e foi apontado como líder do grupo,
abandonou a escola na 5ª série, enquanto outro co-autor, de 18 anos, repetiu a
5ª série por quatro anos. O delegado Adilson Palácio, que investigou o delito,
chegou inclusive a afirmar à imprensa, com relação à sua carreira na Polícia,
que “90% das pessoas que prendi fizeram somente até a 5ª série”.
É preciso enquadrarmos devidamente essa informação. Será que
a falta de educação justifica o crime bárbaro cometido? Obviamente não. Será
que tal deficiência primária justifica que, agora, os criminosos sejam tratados
como vítimas? Não. Muitos outros jovens encontram-se nas mesmas condições e não
se tornam homicidas. Mas se estamos discutindo propostas para diminuir a
violência, especialmente aquela cometida por adolescentes, então devemos levar
em consideração que esse abandono escolar constitui fator de alto risco e
merece ser enfrentado com prioridade, pois do contrário desperdiçaremos tempo,
energia e dinheiro com medidas ineficientes. Talvez, se os autores do crime
tivessem sido mantidos na escola, o delito não teria ocorrido.
Mas para que isso venha a ser providenciado no futuro, não
basta só disponibilizar a vaga escolar. É preciso que a educação oferecida seja
de qualidade, capaz de despertar o interesse do aluno e ajustada à sua
realidade, além de prepará-lo para os desafios da vida, incluindo os
profissionais.
Ora, muito embora o Brasil tenha avançado nos últimos anos
na universalização do acesso ao ensino fundamental, o país vem fracassando ―
regredindo até ― de forma evidente no quesito qualidade de ensino, além de não
expandir a educação infantil. Segundo levantamento do próprio Ministério da
Educação, é baixo o rendimento no ensino fundamental e médio, sendo crescente o
abismo entre a educação pública e a particular. A maioria dos alunos não
consegue interpretar textos ou resolver problemas básicos de lógica.
Vale enfatizar que todos esses fatores de violência cometida
contra os jovens estão co-relacionados, contribuindo em conjunto para conduzir
certos adolescentes ao crime. Assim, uma situação familiar precária, marcada
pela agressão física, pode levar ao uso de drogas, que por sua vez pode
estimular a prática do ato infracional.
Devemos também listar como ato de violência contra os
jovens, embora repercuta sobre toda a sociedade, a criminalidade do colarinho
branco, que com raras exceções não é punida em nosso país, e através da qual são
desviados bilhões de reais anualmente dos cofres públicos. Trata-se exatamente
de dinheiro que faltará para a melhoria das condições de vida da população
jovem desfavorecida. E ao mesmo tempo em que se fala em encarceirar o
adolescente, nada é feito para realmente punir tais criminosos abastados, cujos
delitos lesam a sociedade de forma mais significativa. Pelo contrário, vários
criminosos do colarinho branco acabam sendo beneficiados com a redução de pena
por terem mais de setenta anos.
Enquanto todos esses atos de violência são praticados
diariamente contra o jovem brasileiro, à margem das manchetes dos jornais, e
sem que a opinião pública se levante para exigir dos governantes o fim de tal
massacre, o que se prega no país é a redução do maioridade penal como solução
para o problema da criminalidade e da propagada impunidade dos adolescentes.
Assim, vários projetos já estão sendo discutidos no Congresso, alguns propondo
a redução para 16 anos de idade, outros para 14, 12 e alguns sugerindo não
fixar prazo algum, ficando a responsabilização ou não como adulto na
dependência de um exame criminológico.
Deve ser levando em consideração, entretanto, que de acordo
com a ONU mais de 60% dos países possui a maioridade penal aos 18 anos de
idade, e apenas 17% deles adota idade inferior a 18. Há casos como os da
Alemanha e da Espanha, que recentemente elevaram a maioridade de 16 para 18
anos, por constatar a ineficácia de se punir adolescentes como adultos. A
Alemanha, inclusive, criou um regime especial para os jovens entre 18 e 21
anos. No Japão, onde os índices de delinqüência juvenil aumentaram bastante, a
maioridade penal foi elevada para os 20 anos de idade.
Devemos alertar, também, que inimputabilidade ou
incapacidade para fins penais não é sinônimo de impunidade, ao contrário do que
vem sendo alardeado. Na verdade, o Estatuto da Criança e do Adolescente é, sob
vários aspectos, mais rigoroso que a legislação penal. Nesse sentido, as
diversas sanções impostas ao adolescente não possuem prazo determinado, circunstância
inadmissível na esfera criminal, e o processo é em regra mais célere (não
existe, por exemplo, o Júri). O adolescente que pratica ato infracional grave
pode ficar internado por até três anos, o que, na prática, costuma significar
mais tempo de confinamento do que o imposto ao adulto, agraciado com o
livramento condicional após cumprimento de uma parte da pena.
Pelo ECA, além disso, desde os 12 anos de idade a pessoa já
responde por ilícitos penais, ficando sujeito a medidas socioeducativas, enquanto
na maioria dos outros países, como Chile, Alemanha e Espanha, tal
responsabilização só inicia aos 14 anos.
Bate-se também na tecla de que hoje os tempos são outros, os
adolescentes possuem maior acesso à informação, de modo que já teriam
discernimento sobre o certo e o errado mais cedo, justificando-se a redução da
maioridade. A afirmação é capciosa, pois o limite de idade, qualquer que seja,
não é definido em termos de falta de discernimento ou entendimento do injusto.
Uma criança de oito anos já pode ter a noção de que é errado roubar, mas nem
por isso se cogita de mandá-la para a cadeia. O critério da maioridade penal é,
na verdade, de política criminal, baseado nas peculiaridades da infância e da
juventude e no interesse de dar maiores oportunidades para as pessoas que estão
desenvolvendo sua personalidade venham a corrigir seus erros, evitando-se a
cristalização de uma vida na criminalidade. Não é pelo discernimento que a
idade-limite é fixada aos 18 ou 16, mas pela pedagogia.
Precisamos ter em conta que a adolescência é um período
naturalmente muito difícil, marcado por angústias e incertezas com relação à
própria identidade e ao papel que lhe cabe na sociedade, sendo tais
fragilidades muitas vezes mascaradas por um comportamento agressivo ou rebelde.
A fase é ainda mais complicada para as pessoas que possuem dificuldade em
controlar essa agressividade, especialmente quando enfrentam grandes
adversidades nos contextos familiar e sócio-econômico e não dispõem,
psicologicamente, de elevada resiliência (poder de recuperação). Acrescente-se
a isso o apelo contemporâneo ao consumismo, que atinge pessoas de todas as
classes sociais, motivando-as a perseguir sem descanso os símbolos de status
(como roupas da moda e de marcas famosas) valorizados pela sociedade, e teremos
um ambiente propício ao cometimento de atitudes imprudentes e lesivas, às vezes
irreversíveis.
Diante do erro do adolescente, diante da sua atitude
socialmente inconveniente, o que está sendo proposto agora é o encarceiramento
precoce, e nos dizem que isso irá resolver, ou ao menos minorar, o problema da
violência. Resta analisar se o sistema penitenciário possui tal capacidade de
solucionar problemas.
A população carcerária brasileira é de 361.000 pessoas, a
maior da América Latina, sendo que atualmente existem, segundo a Associação dos
Juízes Federais, 350.000 mandados de prisão não cumpridos, e um déficit de
90.000 vagas nos presídios. Apenas para cobrir esse déficit seria necessário
construir mais 130 presídios. Se todos os mandados de prisão fossem cumpridos,
a população carcerária dobraria, mas isso não pode ser realizado, pois
simplesmente não há onde colocar tantos presos.
Na maioria dos presídios convive-se com a corrupção
desenfreada, tratamento desumano, superlotação, curra de presos e de seus
visitantes, assassinatos de membros de facções rivais, tortura. Um terço da
população carcerária é portadora do HIV, além de proliferarem muitas outras
doenças, como a tuberculose e a hepatite, sem dúvida em razão das precárias
condições de higiene. Muitos presídios são controlados por facções criminosas,
devendo o preso pagar por proteção ou aderir a uma delas, prestando favores
sexuais e cometendo ou confessando crimes para acobertar os líderes.
A ressocialização, em tais condições, é obviamente
inimaginável. Não por acaso, o índice de reincidência no sistema penal é de
60%, enquanto no sistema socioeduativo, apesar da atual falta de programas
apropriados de internação e semiliberdade na maioria dos estados, é de 25%.
Considere-se, também, que o recrudescimento das propostas
punitivas, priorizando a privação da liberdade, não tem se mostrado capazes de
reduzir os índices de violência. A Lei dos Crimes Hediondos, por exemplo,
agravou bastante a repressão penal exercida, mas não diminuiu a ocorrência de
crimes graves.
A par dessas condições, o custo mensal de cada preso,
segundo estimativa do Departamento Penitenciário Nacional, está entre R$
1.000,00 e R$ 2.000,00, totalizando 6,5 bilhões por ano apenas para manter a
população carcerária atual. Muitos outros bilhões teriam que ser gastos na
construção novos presídios, e o custo mensal da manutenção do sistema
aumentaria.
A redução da maioridade significaria, portanto, inflar ainda
mais o sistema penitenciário, que está falido e é caro, sendo incapaz de
ressocializar quem quer que seja. A “solução” consiste, bem se vê, em mandar
adolescentes para presídios que funcionam como verdadeiras escolas do crime e
centros de tortura, de onde eles sairão irrecuperáveis e ainda mais violentos e
revoltados. Ou seja, de verdadeira solução, a proposta não tem nada.
Se tratarmos adolescentes como feras, fechando-lhes todas as
portas para a saída da criminalidae, eles, que se encontram em idade formativa
de sua auto-imagem, corresponderão a essa perspectiva, e de fato se tornarão
feras incorrigíveis. A sociedade nada ganha com essa aposta. Por outro lado, se
tratarmos o infrator como alguém que errou, que precisa ser responsabilizado,
mas que ainda tem a chance de se tornar um verdadeiro cidadão, teremos alguma
oportunidade de resgatá-lo.
Mas, se reduzir a maioridade não funciona, então o que é que
funciona? A violência e a criminalidade não possuem solução?
Na verdade, a solução para a violência juvenil já existe, só
que não é implementada como deveria. Trata-se do Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), que constitui uma lei bastante avançada, afinada com a
Convenção sobre os Direitos da Criança da ONU.
É curioso que algumas pessoas já tenham decretado que o ECA
não funciona, quando ele sequer foi efetiva e integralmente posto em prática. Os exemplos
apontam justamente no sentido contrário, pois sempre que se aplicou de fato o
ECA, os resultados apareceram e foram extremamente positivos.
A realidade brasileira ainda está distante dos princípios e
regras previstos no Estatuto, muito embora a implementação deles seja factível,
bastando a vontade política para fazer acontecer. Na maioria dos municípios e
estados, os programas de execução de medidas socioeducativas, tanto em meio
aberto quanto fechado, não existem ou funcionam de forma precária,
inviabilizando a reinserção social do infrator, o que possibilita a escalada do
comportamento delitivo. Também são falhos os atendimentos na área da saúde e
assistência, como o amparo à criança e adolescente vítima de agressão doméstica
ou abuso sexual, e escassos os programas de profissionalização.
No Rio Grande do Sul, por exemplo, mais da metade dos
municípios ainda não criaram, apesar dos dezesseis anos de vigência do ECA,
programas de medidas socioeducativas em meio aberto. Em 55% das comarcas
gaúchas, os programas são mantidos pelo Poder Judiciário, em 8% por ONGs, e
apenas em 37% pelas Prefeituras. Mais da metade das capitais brasileiras não
conta com programas desse tipo, que são reconhecidamente eficazes e muito mais
baratos que as medidas privativas de liberdade.
Além disso, havia em 2006 no país um déficit de 3.396 vagas
nos centros de internação, sendo que 685 adolescentes encontravam-se cumprindo
a medida em cadeias, o que é vedado pela lei. Os programas de semiliberdade são
raros, sendo comum o encaminhamento do adolescente para internação apenas por
inexistir centro de semiliberdade.
Mas a mera criação do programa não deve gerar a ilusão de
implementação do ECA. Muitos dos programas supostamente existentes carecem de
estrutura adequada, como profissionais – psicólogos, assistentes sociais,
educadores – em quantidade suficiente para acompanhar o adolescente durante
toda a execução. Fica-se, então, com a impressão que o programa é ineficaz,
quando na verdade ele sequer chegou a ser posto devidamente em prática, tendo
sido estrangulado pela falta de recursos materiais e humanos.
Quando, entretanto, existe a vontade do governante e de
entidades da sociedade civil para fazer valer o Estatuto, os resultados positivos
aparecem, com a redução da violência, dos atos infracionais e da reincidência.
Um desses exemplos de sucesso é a criação do Núcleo de
Atendimento Integrado (NAI) de São Carlos, SP, no qual o infrator recebe, além
das medidas socieducativas, atendimento por uma rede integrada de serviços, que
incluem as áreas da saúde, educação, assistência social, esporte e lazer. Desde
a implantação do NAI, o número de homicídios no município caiu de 15 em 1998
para 2 entre 2001 e 2005 e nenhum em 2006. A reincidência dos adolescentes que
passam pelo Núcleo é de apenas 5%. Em acréscimo, o custo do atendimento gira em
torno de R$ 300,00 mensais por adolescente, já que evita-se em muitos casos a
internação, enquanto o atendimento na FEBEM paulista custa de dois a três mil
reais.
Outro exemplo é o atendimento no Amapá, através do Centro
Educacional Aninga, de internação, e da Casa de Semiliberdade. Além da medida
socioeducativa e do ensino regular, são oferecidos aos adolescentes atividades
culturais, esportivas e de lazer, enfatizando-se também a democratização e
gestão compartilhada do atendimento. Desde 1995 não ocorrem lá rebeliões, e
nunca houve um caso de reincidência na Casa de Semiliberdade.
Em
Santo Ângelo, RS, o CEDEDICA, uma associação civil, coordena
programas de medidas em meio aberto com excelentes resultados e baixos índices
de reincidência, destacando-se o Projeto Florir, que possibilita a capacitação
profissional dos adolescentes no ramo da floricultura, e a criação de uma
cooperativa de trabalho de mães de adolescentes em cumprimento de medida
socieducativa, que viabiliza o envolvimento delas no processo e a melhoria dos
vínculos familiares.
A solução do problema da violência também passa pela criação
de programas centrados na prevenção, os quais praticamente inexistem, de forma
permanente, por parte do Estado. A família e a escola constituem locais
privilegiados para a implantação de tais programas, que poderiam implicar em
intervenções desde o nascimento da criança para famílias em situação de risco social,
treinamento e acompanhamento dos pais, programas escolares de prevenção
primária de crimes, violência e drogas, e programas de integração comunitária,
fortalecendo a participação coletiva.
A prevenção também passa pela diminuição da evasão escolar,
a melhoria do processo pedagógico, a criação de creches para permitir a
universalização do atendimento infantil e a disponibilização, em número
suficiente, de cursos profissionalizantes. Também é importante a
responsabilização dos pais, por exemplo quando descumprem as determinações do
Conselho Tutelar, evitando que eles transfiram seus deveres para o Estado.
Outra medida fundamental consiste na implementação de
políticas de planejamento familiar, que evitariam a perpetuação dos casos de
abandono e rejeição dos filhos, origem de incontáveis dramas familiares. Já foi
estabelecida cientificamente, aliás, a relação entre gravidezes indesejadas e
uma maior propensão desses filhos a doenças psiquiátricas, alcoolismo,
dificuldades educacionais e comportamento criminal (nesse sentido, Forssman e
Thuwe, em trabalho de 1966).
Sobre o assunto, Drauzio Varella comentou com pertinência em
seu artigo “Controle de Fertilidade”: “Quem já pôs os pés numa cadeia, sabe o
quanto é difícil encontrar um preso que tenha sido criado em companhia de um
pai trabalhador: a maioria esmagadora é de filhos de pais desconhecidos,
ausentes, mortos em tiroteios ou presidiários como eles. (...) A falta de
recursos para programas abrangentes de planejamento familiar é desculpa
irresponsável! Sai muito mais caro abrir escolas, hospitais, postos de saúde,
servir merenda, dar remédios e arranjar espaço físico para esse mundo de
crianças. E, mais tarde, construir uma cadeia atrás da outra para enjaular os
mal comportados.”
Fica claro que há sim formas de lidar com a violência, e
elas produzem resultados. Só que não há fórmula mágica, e todas as medidas
eficazes demandam tempo, dinheiro, vontade política e envolvimento da família,
da escola, do poder público e de toda a sociedade. A aprovação de uma lei
reduzindo a maioridade seduz, no entanto, com a ilusão de uma solução
instantânea, que irá de uma hora para outra nos livrar da violência. Essa
promessa, como vimos, é falsa, mas muitos caem nesse canto da sereia.
Na verdade, o que temos feito até agora – nós todos,
enquanto membros da sociedade – é recusar responsabilidade pelos problemas
sociais. Aceitamos graves distorções, como a miséria, o abandono e a falta de
atendimento básico, como naturais ou inevitáveis, mas não aceitamos as
conseqüências de nossas omissões. No fundo, não queremos que nos digam que o
problema é complexo, muito embora ele seja, e nem que as soluções efetivas
demandam tempo e esforço. Queremos algo fácil e rápido, que exija pouco
envolvimento de cada um de nós. Queremos segurança, mas não queremos mudar.
A mídia possui um papel importante para a manutenção desse
estado de coisas. De fato, a informação sobre as causas da violência chega
distorcida ao público em geral, tendo em vista a seleção das notícias. Enquanto
relatos de crimes violentos são abundantes e diários, ocupando quase metade do
tempo de um noticiário de TV, as denúncias da falta de políticas públicas, de
programas adequados de atendimento, de medidas preventivas e do descaso com a
educação são esporádicas. Experiências positivas de enfrentamento da violência,
com as citadas acima, quase nunca são informadas com destaque. E por quê?
Seria importante que os meios de informação alertassem
diariamente a população sobre a deficiência do atendimento, com a mesma intensidade
com que divulgam os crimes, pois nesse caso estaria a sociedade inteira agora
exigindo dos governantes soluções efetivas, como mais programas de apoio
familiar. Se a informação fossem mais ampla, estariam os parlamentares sendo
cobrados para tratar com urgência as questões sociais, e não para propor
mudanças de lei que sabidamente não produzirão resultado. Isso implica no
reconhecimento de que os meios de comunicação têm um papel destacado na
conscientização e politização da sociedade, o qual precisa ser melhor
explorado.
Enquanto isso não ocorre, agimos muito como alguém que tem
uma goteira em casa mas que, ao invés de consertar o telhado, só troca o balde
que já transbordou por outro maior, achando que está resolvendo o problema. O
problema da violência só irá diminuir se atacarmos as causas da violência, e
não suas conseqüências, que são jovens violentos e o aumento da criminalidade.
Claro que o ECA possui pontos que merecem ser aperfeiçoados,
como a regulamentação da execução de medidas socioeducativas. E apesar da
matéria ser polêmica, poderíamos cogitar também de um aumento do prazo de
internação, hoje limitado a três anos, para aqueles adolescentes autores de
atos infracionais mais graves (hipótese na qual se encaixa o assassinato de
João Hélio) e de comprovada periculosidade, com características de psicopatia.
No todo, entretanto, o Estatuto constitui um texto inspirado, do qual todos os
brasileiros podem se orgulhar. Mas apenas a lei não basta, é preciso tirá-la do
papel.
A questão, enfim, é urgente, o problema é muito grave, e a
indignação que todos nós sentimos é mais do que justa, mas nossos esforços
devem ser dirigidos para soluções reais, e não para tapeações como a redução da
maioridade penal, que só agravará o quadro. Não podemos nos dar ao luxo de não
começar já. Reconheçamos desde logo que estamos falhando em proteger nossas
crianças e adolescentes, e passemos a assumir responsabilidade por eles, e por
todos eles, inclusive pelos mais pobres.
O caminho, portanto, é exigir e contribuir para a efetivação
do Estatuto da Criança e do Adolescente, até convertê-lo inteiramente em
realidade, com a criação de políticas públicas de atendimento básico e de
assistência integral à infância e à juventude. Vamos assegurar desde já uma
existência digna às nossas crianças e adolescentes, para que depois eles não
acabem pagando por erros que, no fundo, são nossos.
6 comentários:
Parei na metade, mas já entendi o raciocínio, está correto.
Só a parte do abuso sexual no RS, não vi o cara citar a fonte. Além de que é estranho, nunca ouvi nenhum caso aqui na cidade, acho que o abuso tem haver com educação e aqui não é o pior índice de educação, então essa dado é tendencioso, o número de casos aqui não deve ser tão alto.
Esse caso João Hélio é velho pra caralho KKKKKK.
Mas acredito que teria q baixar igual, meu melhor argumento é a consciência, qualquer "criança" com 16 anos, já tem uma consciência de um monte de coisa, então, não é preciso aumentar o rigor dos crimes, eles podem ser tratados como casos especiais ainda, mas deve se ter maioridade aos 16, pelo fator consciência humana.
Mas então!
Existe um certo misticismo de se dizer que a criança é sempre bondosa, isso é falso.
Não deveria precisar disso de diminuir a maioridade, bastava fazer uma pequena reforma no ECA e pronto.
Mas como podemos cobrar mudanças no ECA sendo que muita coisa que está nele nem funciona direito?
Complicado isso...
Sou contra a menoridade penal, em primeiro lugar, o sistema penitenciário nacional é decadente e o investimento na reabilitação de criminosos é crítico. Ou seja, prender esses jovens como criminosos adultos e absolutamente capazes é insanidade, só vai torná-los pior, a questão não jogá-los em um canto e esquecê-los, devemos fazer mais por eles. O símbolo do direito é um golfinho, por que existem inúmeros relatos e lendas sobre golfinhos salvando náufragos e ideal do direito é salvar as pessoas que estão se afogando na vida ou na margem da sociedade. Misericórdia e empatia, acho que essas palavras resumem bem o que precisamos para vencer essa guerra. Devemos é procurar uma forma de dar aos jovens capacidade de corresponder as necessidades primárias da pirâmide de Maslow e não simplesmente tranca-las e rejeitá-las em nossa sociedade, até porque essas pessoas são responsabilidade nossa, somos todos cúmplices do mal que as levou a cometer seus delitos, isso é um fato social. Claro, existem aqueles que são maus por sua própria natureza, nesse caso, acredito que melhor solução é mandá-las para uma clínica psiquiatra e não para uma prisão. A psiquiatria e a psicologia são ciências jovens, temos muito o que explorar na mente humana para combater esses demônios internos e assim acabar com o mal pela raiz.
Pedro la Ruína
@ Pedro: Brasileiros no geral tem a tendência de condenar e esquecer.
Resultado disso são as cadeias cheias pra cima e pra baixo do país e organizações criminosas como o PCC de São Paulo se aproveitando disso.
O dia que a gente começar a se preocupar com reabilitação do infrator de verdade, essas coisas mudam.
Não é preciso investir tanto dinheiro assim, nem temos dinheiro sobrando.
O melhor remédio é o mesmo, um bom "laço/passar a vara" em casa, duvido que volte a cometer algum delito. Pelo menos funcionou aqui em casa com o meu irmão.
16 e 18 não há diferença, logo se é pra não baixar aumenta pra 20...
Senão baixa pra 16 mesmo, nessa idade já se tem consciência dos atos.
Medidas protetivas, são sinônimos de impunidade.
@ Gold: Mas daí a gente cairia naquele negócio: "Como vc tem criado seu(s) filho(s) ultimamente?"
Antigamente as coisas eram rígidas, os pais mandavam e desmandavam na criação dos filhos.
Acho que não seria incorreto pensar que a educação vinha da opressão dos pais.
Os pais hoje em dia pelo pouco que vejo são liberais, até demais da conta, deixam os pequenos fazerem e acontecerem, sem muito critério.
O que era rigidez virou um liberou geral, não acho que seja por aí que se crie filhos.
Eu acho que os pais de hoje em dia deveriam pegar o que tiveram de bom na época que eles eram filho e aplicar aos filhos de hoje, mas...
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